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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Shark Attack!


Ou as criaturas do oceano que fizeram a história do estilo do Corvette.

Bill Mitchell é a outra lendária figura na história do Corvette. Digo outra porque Zora Arkus-Duntov é considerado por muitos como o homem que fez do Corvette um verdadeiro esportivo competente, ao ponto de brigar com o melhor da Europa. Mitchell foi um dos vice-presidentes de Design da GM, sucedendo o lendário Harley Earl no posto. Earl tinha em Mitchell seu protégé, em particular era grande admirador dos esboços de carros de corrida que Mitchell tinha a mania de fazer. Mitchell trabalhou nos estúdios de design da GM de 1930 até o final da década de 70. Desenhar carros de corrida sempre foi a grande paixão de Bill Mitchell.

Na foto de abertura acima vê-se o Stingray Racer de 1959, como Mitchell o deixou para uso na rua.



Assim como o lendário Zora Arkus-Duntov, Mitchell era um entusiasta nato e olhava para automóveis de corrida como frutos de divina inspiração artista. Porém, ao contrário de Duntov, que se concentrava no lado de engenharia e desempenho do Corvette, Mitchell era o homem de estilo. Em 1957, resolveu desenvolver um carro para seu prazer particular de contornar curvas rapidamente. Naquela época existia o Projeto do Corvette SS que foi liderado com méritos por Duntov. Porém para o desespero de vários entusiastas norte-americanos trabalhando em qualquer das três grandes de Detroit, a AMA (Automobile Manufacturers Association) decide banir as corridas de automóveis. Como consequência as competições americanas se tornam o território exclusivo de donos de oficinas e verdadeiros entusiastas. Como resultado do banimento da AMA, Mitchell decide se tornar um corredor independente e construir algo que sempre gostou de desenhar: um carro de corrida único.

Detalhe do habitáculo do Stingray Racer de 1959, já com o segundo banco adicionado.

Logo após a estreia do Corvette SS, o banimento da AMA se torna oficial e com isso mata a intenção de levar o SS para Le Mans, onde Duntov obteve duas vitórias como piloto. Duntov salva um exemplar de testes e desenvolvimento do SS num depósito e o deixa lá com a esperança de que dias melhores viriam.


Mitchell sabe da existência do chassis do SS e pede o carro para Duntov. Independentemente de pagar pelo SS à GM, era preciso a bênção de Duntov. Como cavalheiro e esportista, ele cede o chassis a Mitchell que o usuaria para criar talvez um dos mais belos esportivos de todos os tempos, o Stingray Racer de 1959.

O Corvette SS Racer de 1957 que doou o chassis para o Stingray de Mitchell.

Para o projeto, Mitchell chama dois de seus estilistas sêniors: Larry Shinoda e Ed Wayne para ajudar na tarefa. Mitchell queria um carro leve e de perfil baixo, e assim, diz a Shinoda que o que ele mesmo queria era algo com um perfil de um Ocean Dweller (criatura de oceano), como uma arraia rajiforme (Stingray). Mitchell esboça algo muito parecido com uma arraia e deixa Shinoda pensar no conceito. Shinoda trabalha quase que sozinho no desenho do novo carro nas horas vagas junto com a pequena participação de Wayne.

O Stingray de Mitchell

O interessante de poder contar com o Corvette SS é que o mesmo não era simplesmente baseado numa evolução do Corvette C1, mas continha vários estudos, liderados por Duntov, que compunham a nova plataforma de segunda geração denominada Q-Corvette. A nova plataforma possibilitava um carro muito mais leve, de aproximadamente 1.000 kg de peso a seco, ou 500 kg mais leve que um Corvette de primeira geração.


Após terminar alguns desenhos e esboços, Shinoda e Mitchell levam o chassi do Corvette SS para a garagem da casa de Mitchell para fazerem um modelo de argila sobre o chassis do que viria a ser o Stingray Racer. O objetivo de construir o carro é poder “brincar” com ele nas corridas amadoras do SCCA (Sport Car Club of America). A carroceria do carro é feita de plástico reforçado com fibra de vidro, como no Corvette de série.

Por causa do banimento da AMA, o nome Corvette não poderia aparecer no carro. Logo Mitchell decide chamá-lo de Stingray Racer, uma homenagem ao animal que inspirou o desenho do carro: a arraia de ferrão. Larry Shinoda também serviu de mecânico, estilista, chefe de equipe e todo o tipo de tarefa necessária para levar o carro para as corridas amadoras da SCCA. Porém quando foi de fato a hora de levar o Stingray para a pista, Mitchell amarelou, dizem as más línguas. A tarefa de pilotar o carro ficou para o Dr. Dick Thompson, que já tinha um bicampeonato do SCCA no currículo pilotando Corvettes. Na estreia, o Stingray ganha a corrida de Marlboro em 1959 na classe C. Após a vitória, o Dr. Thompson consegue mais 3 triunfos com o Stringray e sagra-se campeão da classe C em 1960.

O Stingray Racer tinha um motor de 4,6 litros V-8 do Corvette com injeção eletrônica e comando Duntov, o suficiente para 315 hp (320 cv). Para os 1.000 kg do carro e o novo chassi, era potência superior à da concorrência. O grande problema do Stingray Racer eram os freios. Inicialmente a tambor nas quatro rodas, o carro não aguentava muitas voltas antes de ficar totalmente sem freios.

Após o sucesso na SCCA, Mitchell instala um para-brisa no carro, banco de passageiro e faróis na grade, deixando o carro legalizado para uso na rua. Dessa forma, Mitchell substitui seu amado Jaguar E-Type de primeira geração pelo exótico Stingray Racer como seu carro de uso diário.

O carro chama a atenção da GM, que pede para Shinoda desenhar o novo Corvette com o mesmo desenho de raia do Stingray Racer. Nasce assim o Corvette Stingray original de 1963 a 1967.

O Stingray 63 Z06 com Duntov ao lado. O split window que desagradou Duntov.

Apesar de todo o sucesso do Stingray Racer, do maravilhoso desenho do Corvette C2 de 1963 a 1967, muitas pessoas ainda associam a imagem do tubarão com o Corvette. Tubarão foi uma inspiração futura que, com base no Mako Shark II, influenciou o desenho do Corvette C3. Ironicamente, apesar da arraia não ser mais o animal temático do C3, foi a imagem da araia que ajudou o C3. No primeiro ano do C3, 1968, o carro teve sérios problemas logísticos e de qualidade que resultaram numa quantidade épica de críticas ao novo carro. Como consequência, para 1969 o departamento de marketing da GM resolve reviver o nome Sting Ray (dessa vez em 2 palavras) para ajudar na imagem do C3. Dessa forma, uma das grandes diferenças entre o modelo 68 e o modelo 69 é justamente o emblema Sting Ray não presente no 68.

O Mako Shark II de 1965

Para 1961, Shinoda desenha uma versão civil do Stingray Racer como estudo para o novo Corvette C2, o protótipo XP-755. Na época, numa viagem de pesca ao Caribe, Mitchell captura um tubarão Mako de barbatana curta que ele manda embalsamar num troféu para sua sala. O Mako é o tubarão mais rápido e tem uma cor azul metálica única que encanta Mitchell. Mitchell então pede para sua equipe de estilo pintar a nova versão de Shinoda de acordo com a cor do tubarão em sua sala. Após três tentativas frustradas de tentar imitar a cor azul metálica degradée com cinza do tubarão, diz a lenda popular que a equipe responsável pela pintura do XP-755, entra na sala de Mitchell e sequestra o troféu, dando um tratamento de pintura ao peixe semelhante à melhor tentativa no XP-755. Posteriormente, o troféu é devolvido à sala de Mitchell que nunca dá conta da diferença. Mas, claro, é apenas uma lenda. A verdade é que Mitchell se dá por satisfeito com a pintura final do XP-755, que apesar de lembrar os tons do Mako, nunca ficou exatamente igual. Devido ao episódio, o que é certo é que o carro acabou sendo apelidado de Mako Shark pela equipe de Mitchell. No final, o Corvette de segunda geração acabou sendo mesmo batizado de Stingray, nome muito mais sonoro e justo uma vez que o animal que inspirou o Stingray Racer foi a arraia e não o tubarão.


O XP-755 Mako Shark I de 1961.

Em 1964, um arranca-rabo entre Duntov e um outro engenheiro, Frank Winchell, culmina num novo carro desenhado por Shinoda que iria influenciar o Mako Shark II. Winchell dizia a Duntov que era possível fazer um carro com motor traseiro que fosse bem estável, bastando para tanto equipá-lo com pneus maiores atrás e um motor mais leve, de alumínio. Precisamos entender que essa era a época do Porsche 911 que tinha sido apresentado em 1963 com motor traseiro. Winchell trabalhava na equipe do Corvair e acreditava em motores traseiros. Já Duntov sabia melhor o que a casa gostava e discordava totalmente de Winchell. Na verdade, como sabemos, o 911 tem motor traseiro por limitações técnicas da época. Inicialmente Butzi Porsche queria motor central, porém a transmissão, câmbio etc eram um problema e ele teve que deslocar o motor para trás. Duntov sabia que isso era péssimo para um carro. Porém, nos anos 60, qualquer argumento dentro da GM acabava em protótipo para testes. Sendo assim Winchell construiu o XP-819, o Corvette de motor traseiro, com a ajuda de Shinoda.

O Corvette XP-819 de motor traseiro de Winchell e Shinoda.

Winchell fabricou um chassi com peças únicas para esfregar na cara de Duntov. No processo, pediu a Shinoda desenhar a carroceria durante o almoço. Duas horas depois, Shinoda tinha uma maquete do desenho na parede com fita adesiva. Notem que o XP-819 tem muito do que viria a ser o Mako Shark II e o Corvette C3. Muito mais baixo que um Stingray de produção, o carro foi equipado com um motor V-8 marítimo da GM todo em alumínio. Quando Duntov viu o desenho de Shinoda do carro ficou impressionado. Perguntou a Shinoda “Onde foi que você trapaceou para deixar esse desenho de motor traseiro tão bom?” Em dois meses o XP-819, de desenho a protótipo, estava na pista.

O carro (acima) tinha rodas raiadas inspiradas nos carros Chaparral e foi levado à pista para testes de alta velocidade. Num segundo teste, os pneus traseiros foram trocados por pneus convencionais de Corvettes de produção, resultando no carro ter ido parar no muro. O chassi foi cortado ao meio, algumas peças foram reaproveitadas e a carroceria batida, bem como o resto do carro, foi para uma pilha de lixo e ficou lá por anos. Um colecionador viu os restos do carro e resolveu comprá-lo e restaurá-lo. Porém como não tinha um motor marítimo de alumínio, colocou um motor de ferro fundido normal de Corvette.

O chassi único ainda com o motor marítimo atrás e os pneus maiores.

Como resultado, hoje o carro esta exposto no Corvette Museum emprestado pelo seu dono.

O XP-819 ao lado de um Stingray de 1964.

O XP-819 com o motor de ferro como se encontra hoje.

Em 1965, a equipe de Mitchell decide preparar um novo desenho como exercício do que viria ser a nova versão do Corvette para 1968 e apresentá-lo no Salão de Nova York junto com o Mako Shark I. Nasce então o Mako Shark II, esse sim um desenho do próprio Mitchell ainda que com a mão de Shinoda. Foi também a segunda vez que Mitchell e Duntov discordam e iniciam um arranca-rabos de titãs.

O Mako Shark II de 1965 e Miss Connie Van Dyke.

A primeira vez que Mitchell e Duntov discordaram foi em 1963 com a janela dupla do Stingray de 1963, o famoso Split Window. Duntov é contra o design porque atrapalha a visão, Já Mitchell defende sua decisão. Duntov constrói o Z06 em 1963 usando a carroceria Split Window contra sua vontade. Porém, Duntov ganha o que queria em 1964 e então faz do Corvette 63 um item muito colecionável.

Interior do Mako Shark II de 1965.

Mas retornando ao Mako Shark II, é importante entender que nessa época primeiro é feito o desenho do carro e depois os engenheiros têm que se virar para fazer funcionar. Hoje, estudos aerodinâmicos influenciam no estilo. Duntov não gosta do desenho, que para ele não é eficiente ergonomicamente para os ocupantes , muito apertado, ele dizia. Tinha razão, porque isso acabou sendo um dos defeitos do C3. Porém, o Mako Shark II é belíssimo, mais comprido que o Stingray, com perfil de garrafa de Coca-Cola e para-lamas dianteiros altos e curvilíneos. Duntov volta atrás depois.


Como era de sua natureza, Duntov leva o Mako Shark II para a pista a fim de testá-lo. Em determinado momento, um pneu estoura e Duntov dá uma forte lambida no muro com o Mako Shark II. Não fossem os enormes para-lamas pronunciados do carro, Duntov teria se machucado seriamente. Após o incidente, curiosamente Duntov não disse mais nada negativo sobre o carro. Um ponto curioso é que o Mako Shark I era apenas um modelo que não rodava quando apresentado, já o Mako Shark II era um carro funcional. Anos depois, um big block foi instalado no Mako Shark I, tornando-se um carro funcional.

Mako Shark II e Miss Van Dyke. Notem o teto que abre para ajudar a sair do carro.

Para as fotografias oficiais do Mako Shark II, a Miss Teen America de 1963, Connie Van Dyke, foi a modelo escolhida. O interessante é que ela foi escolhida por Myron Scott, que foi o responsável pela sugestão do nome Corvette para o carro. Tudo em família no universo do Corvette.

O Manta Ray

Após o Mako Shark II, as arraias voltaram a ter importância no estilo dos Corvettes. Um novo carro-conceito, o Manta Ray (Jamanta ou arraia diabo) foi construído em 1969. Esse carro era uma evolução do Mako Shark II e, assim como o Stingray Racer de 1959, virou carro de uso de Mitchell. O Manta Ray tinha a mesma pintura degradée que estreou no Mako Shark I de 1961 mas tinha uma curiosidade: atrás haviam duas portinholas que escondiam luzes de freio, que se abriam nas freadas fortes. Era um prercursor da terceira luz de freio mandatória nos Estados Unidos.

O Manta Ray. Notem a trasera com duas portinholas escamoteáveis com as luzes de freio.

Em 1968, o Corvette de terceira geração (C3), também conhecido como geração Mako Shark, veio a público. Esse carro foi baseado no Mako Shark II, porém com para-lamas menos exagerados. Foi uma das gerações que mais durou na história do Corvette, indo de 1968 até 1982. Foi também a geração mais amaldiçoada pelos exageros da década de 70 e as novas regras de emissões americanas que mataram a característica esportiva do carro, tornando-o um grã-turismo de gosto duvidoso. O Tubarão, como é chamado, teve seus melhores anos de 1968 até 1973. Hoje é possível se comprar um em bom estado por um preço menor que um típico sedã japonês.

Corvette C3 de 1968.

Em 2009, um novo carro-conceito evocando o lendário nome Stingray foi construído, estreando no filme “Transformers” e roubando a imaginação de uma nova geração de pequenos entusiastas. Esse novo conceito, assim como seus antecessores, deverá influenciar a nova sétima geração do Corvette (C7) em estudos no momento.


O Stingray de 2009.

Mitchell se aposentou em 1977. Na época, aposentadoria não era opcional mas sim mandatória aos 65 anos de idade. Faleceu em 1988 e é considerado um mito para os amantes do Corvette junto com Duntov. Larry Shinoda foi “roubado” por Henry Ford II em 1968 para melhorar a imagem da Ford. Shinoda teve como primeira tarefa outro ícone americano, o Ford Mustang, desenhando o maravilhoso Boss 302 e a subsequente a geração carroceria grande do Mustang que morreu em 1972 devido à crise do petróleo. Shinoda faleceu em 1997.


O desenho do Stingray Racer de 1959 de Shinoda, assim como o Corvette de segunda geração (C2) é considerado por muitos como a melhor interpretação do Corvette até hoje. Isso somado isso aos poucos cinco anos de produção, fazendo do C2 a geração mais desejada do Corvette. Conclui-se então que, dentro dos peixes cartilaginosos, a arraia é o animal nobre da família Corvette e não o tubarão.

2 comentários:

Anônimo disse...

História. . . muita história,inovações,evolução do carro.Mas, o Sting Ray 1964 é o modelo que "carrega" a "alma" da espécie.
O que acham?

Rafael Ruivo disse...

Carlos

Muito bom texto, bem completo. Mas se me permite um comentário off-topic, achei que contar a história com os verbos no presente deixou o texto meio cansativo e com um ar meio antipático...

Abraços

Ruivo